segunda-feira, 26 de março de 2012

D. Palmira

Antes de iniciarem a sua especialidade os médicos frequentam o Ano Comum, período vocacionado ao estágio em áreas como a Cirurgia Geral, Pediatria e Medicina Geral e Familiar. Recordo-me de um doente internado num serviço de Medicina Interna. A sua grande simpatia igualava o nervosismo e esta última característica tornou-o conhecido na enfermaria. Para esclarecer uma lesão cerebral foi pedida uma ressonância magnética. O exame foi interrompido por uma dor excruciante. Os gritos lancinantes avivaram-lhe a memória de uma caçada e de um estilhaço metálico alojado no antebraço algumas décadas antes. E se o homem já era assustadiço então depois deste episódio nem se fala... Bom, o passo seguinte era remover cirurgicamente o estilhaço. As vias normais de referenciação demorariam algum tempo e como nutria apetência pelas especialidades cirúrgicas desde o início do curso de Medicina propus-me para executar o procedimento. A intervenção decorreu numa sala reservada e tudo corria dentro do previsto até que o doente anunciou: tenho a mão dormente. A frase era avassaladora! Revi os passos efectuados e não me parecia provável ter lesado algum nervo. Não era provável, mas como ter a certeza? A resposta à minha inquietação veio logo de seguida: a outra mão estava dormente, os pés também, a cara suada e a respiração acelerada. O doente estava a ter uma crise de ansiedade. Parei um pouco, dei-lhe algumas dicas para controlar a respiração e desviar o olhar. Desviar o olhar! Foi exactamente nesse momento que reparei numa das macas estacionada nessa sala. Sob o lençol repousava D. Palmira. O contorno era denunciador e a pergunta colou-se ao meu pensamento: e se ele repara? O estilhaço foi retirado, suturei o tecido subcutâneo e a pele, coloquei o penso e nada. Ao atravessarmos o corredor ainda nos cruzámos com os maqueiros que levariam D. Palmira a caminho da última morada.

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