terça-feira, 23 de novembro de 2010

Ciclo da Vida

Dava os primeiros passos nesta especialidade quando, da enfermaria de Ginecologia, nos anunciaram uma paragem cárdio-respiratória. A senhora agonizava há alguns dias e o cancro que a consumia vencera-a numa derradeira luta desigual. “Paz à sua alma, finalmente” pensei. Pela minha mão, a última entrada no diário clínico certificava o óbito: 22h52. Regressei ao Serviço de Urgência e, ao marcar o código na porta de acesso, ouvi o inconfundível choro de um recém-nascido. Na sala, a enfermeira registava os dados do parto que acabara de ocorrer: 22h52. Houve quem achasse piada à coincidência, outros sentiram um arrepio místico-religioso mas ninguém deixou de reflectir sobre aquele misterioso desígnio!
Outra senhora, com igual número de rugas e de anos vividos que a minha avó, tinha sido operada por uma massa pélvica e acumulação de líquido no abdómen. Durante a cirurgia não restaram dúvidas acerca da malignidade do tumor e da impossibilidade de removê-lo. Nessa tarde fui pressionado pelas filhas para inventar um diagnóstico quando tornasse a falar com ela. Na visita da manhã seguinte a doente afiançou-me que as filhas eram boas pessoas mas que achavam que ela era uma criança. Perguntou-me o que tinha. Disse-lhe a verdade. Respondeu-me que já tinha vivido muito e passado bons momentos, mostrando a foto de uma bebé. “Todos temos de morrer, não é?” “Sim, mas não será para já; desfrute bem o tempo com a sua bisneta”, acrescentei.
Sou frontalmente contra iludir as doentes, embora, por vezes, assim peçam os familiares. O tempo que falta pode ser precioso para apaziguar uma querela, contar um segredo, destinar uma herança, assumir um acto do passado… A transmissão de más notícias deve ser feita com verdade e humanidade. E esse é um valor que procuro transmitir aos meus alunos.
O ciclo da Vida completa-se na Ginecologia e Obstetrícia: dos pulmões que se enchem de ar e anunciam ao mundo o nascimento de um novo ser até à última expiração da idosa que padece de mal ginecológico.

1 comentário:

  1. Adorei este tema. Realmente o ciclo da vida é isto. Saliento a importância do apaziguar querelas. PARABÉNS

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