Deparo-me frequentemente com críticas públicas feitas aos médicos em geral e a alguns colegas em particular. Seguramente algumas pessoas têm razão nas suas críticas mas várias incorrem em profundas injustiças. Um dos temas recorrentes relaciona-se com o controlo dos horários. Não posso concordar com atitudes displicentes face à pontualidade. Porém, o fanatismo, porventura persecutório, não se coaduna com a actividade médica.
A ininterrupta torrente de doentes que recorria ao Serviço de Urgência naquela tarde espelhava o nosso avassalador trabalho. A equipa em peso revezava-se no atendimento dos novos casos e na orientação clínica das grávidas e doentes ginecológicas internadas.
A cadeira de rodas vinha a um ritmo alucinante, perigosamente conduzida por um familiar. A grávida tinha 28 semanas e começara a sangrar. Sabia que a placenta era prévia e, portanto, o seu temor era natural. A ecografia revelou que o pequenino coração ameaçava parar. Tínhamos de agir com rapidez!
Quando as ondas de adrenalina deram lugar à tranquilidade ouviu-se o comentário da pediatra: “não sabia que estavas de serviço…” “Nem queiras saber” foi a resposta sorridente. A anestesista, interlocutora daquela conversa, tinha vindo à Urgência por uma dor pélvica e, apercebendo-se da agitação, saltou da marquesa ginecológica e veio em nossa ajuda. Entrou no bloco operatório com a roupa normal mas a velocidade com que agiu foi crucial. A afinada orquestra a que presidiu reunia soros, drogas que adormecem, um laringoscópio, um tubo endotraqueal e um ventilador. Já o bebé estava a ser reanimado quando a colega foi rendida por outro anestesista. Nesse instante, virou-se e ajudou as pediatras: 1-2-3, ventila; 1-2-3, ventila… ouvíamos enquanto suturávamos o útero.
Sem ela, a criança não teria sido salva. Sem ela, a casa destes pais não teria se enchido de alegria quando, após três meses de internamento, o rebento teve alta. Sem ela, que não estava de serviço.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
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