Ao longo da vida profissional de um médico ocorrem diversos episódios interessantes pelo seu carácter hilariante ou pela intensidade emocional. Desde há algum tempo tenho sido incentivado a relatar algumas histórias vividas no hospital público da área da Grande Lisboa onde tenho o privilégio de trabalhar. Assim, deixarei por algumas semanas a divulgação científica e inicio hoje a primeira de cinco crónicas.
A noite estava calma. O contínuo som do CTG inundava o Bloco de Partos num ritmo tranquilizador, convidando ao repouso. Esta pausa permitiu-me trocar dois dedos de conversa com a colega que me acompanhava. O torpor induzido por um dia de bastante trabalho fazia-nos ansiar pelos colegas que nos renderiam na segunda metade da noite. Às 3h05 ecoou peremptório o grito da enfermeira: “Os bombeiros trazem uma grávida a sangrar!” Os dois soldados da paz estavam lívidos e também pálida e trémula se encontrava a grávida que se esvaía em sangue. Ao colocar a sonda do ecográfo vimos um esperançoso coração a bater ameaçado por uma placenta descolada. Gritei: “está vivo”, imediatamente completado pela minha colega “Cesariana!”. Uma onda de adrenalina banhou o Serviço e todos acorreram para o salvamento. Enfermeiras e auxiliares, exímias na preparação da doente, velozes no cumprimento da missão. Na sala de operações os pediatras preparavam-se, o anestesista dizia bons sonhos à grávida e avançámos numa alucinante sequência de gestos. Silêncio. Abrimos o útero e dele brotou um avassalador mar de sangue, emergindo em seguida o bebé seguro pelas nossas mãos. “Já está a chorar” e todos respirámos. Tinha perto de 2 Kg e agitava-se de felicidade. Também nós. A intervenção continuou e, do suporte de soros, avolumavam-se gotas vermelhas de uma dádiva bendita. Quando fui descansar, as imagens do sucedido passavam vertiginosamente na minha retina, certo de que agimos bem, em nome dos nobres princípios da Medicina.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
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